FRATER CAELIFERUS E SUAS PERIPÉCIAS

Esta é só a primeira parte. Pretendo atualizar continuamente a história à medida em que escrevo sua continuação.


Falarei de forma bem simples o ponto deste texto, que, aliás, é o ponto de todo o resto: não me considero humano. Sim, sim, sei que isto pode soar absurdo aos ouvidos (ou, no caso, ao olhos) alheios, mas não é pelo valor dessa declaração somente que poderei ser chamado de louco. Temos, se quiserem construir pecha de insanidade aqui, que perscrutar um pouco mais fundo minhas constatações. Direi de forma mais simples, porém mais completa: não apenas me considero inumano, mas também não me considero parente das criaturas ordinárias, terrestres. Nada disso – sou, a bem da verdade, um alienígena.

Tentei negar para mim que isto fosse possível, tentei iludir-me com ideias obtusas sobre a evolução, tentei martelar na cabeça a distinção da ficção e não-ficção. Especificamente em meu caso, todas essas tentativas mostraram-se falhas, pois a verdade afirmava-se de forma gritante e, confesso, bem incômoda. Durante toda a minha vida, conforme eu imitava a confusa espécie da qual fingia ser um exemplar, percebia que nossas diferenças eram irreconciliáveis: os humanos, conclui, têm sangue muito quente nas situações que lhes exige sangue frio, e sangue muito frio nas situações que lhes exige sangue quente. Essa inversão, a princípio imperceptível, me dava nos nervos à medida que, tentando eu fazer a mímica de pertencimento, acabava grotescamente dando-me aos erros mais visíveis – isto é, “erros” de acordo com meus padrões, embora parecessem acertos ao julgamento dos humanos, julgamento este que é falho de todas as formas. Continuo a divagar. Sejamos diretos: como eu descobri isso?

Cabe dizer que nem todos os seres são realmente desprovidos de parentesco, por mais que vago, com este pretenso narrador. Creio que fui um tanto brusco em tais afirmações e, antes de corrigir-me, direi que essa divagação, distinta das outras, é essencial para compreenderem-se os locais por onde eu perambulava. Desde cedo, desenvolvi certa atração estética por artrópodes, sejam eles quais fossem. Pareciam-me não só muito mais adequados em seus comportamentos e, ouso dizer, corpos (embora nunca tivessem me despertado qualquer volúpia, coisa horrível de se cogitar) do que toda a pletora de mamíferos e répteis – esses últimos, inclusive, eu desprezo, por motivos que farei questão de explicitar depois.

Voltando ao assunto: essa fixação minha era extremamente gritante, extremamente poderosa. Tão poderosa que, quando adquiri suficiente idade para ler (e ler, inclusive, obras mais complexas), debrucei-me sobre livros de entomologia, os quais não eram interessantes além da natureza mais imediata de suas informações e de suas riquíssimas gravuras. Não, não, algo não está certo, repetia para mim insistentemente. Se a forma mais curiosa de vida não ultrapassava mundana dimensão, então isto só poderia significar duas coisas: ou todos os biólogos e todas as pesquisas feitas estavam erradas ou, em direta oposição a isso, era eu que estava procurando em fontes convencionais. A despeito da mensagem precipitada que se tenta passar hoje em dia, a ciência não possui nem um terço das respostas para as mais importantes dúvidas; o que ela faz, na verdade, é insinuar possíveis caminhos para essas respostas, sem nunca fornecê-las.

Movido por essa sensação, comecei, isso já perto de meus anos de maioridade (com dezessete ou dezesseis, creio) a vagar pelo centro desta cidade decrépita. Não é segredo para ninguém que, para aqueles que sabem procurar, existem muitas livrarias; mas nunca foi de minha índole pagar para ler. Boa parte dos volumes que adquiria eram furtados do seio lactescente das bibliotecas. Contudo, desde que os preços fossem suficientemente acessíveis e desde que os volumes tivessem passado por muitas mãos diferentes (gosto da história individual de cada item), sentia-me confortável em despender pequenas quantias. O leitor sagaz já deve ter entendido o que quero dizer com isso: passei a freqüentar sebos. Muitos sebos. Entretanto, era pelo sebo certo que eu estava procurando – não pelos sebos quaisquer, pelos sebos-alheios. Era por aquele sebo que tinha livros raros o suficiente para enlouquecer um homem. Entretanto, nunca fui um homem no sentido literal da coisa – embora de sexo masculino, era um inseto. E meu paladar, se quisermos traçar comparativo com quase todos os artrópodes carnívoros, possuía dieta que facilmente chocaria os mais sensíveis.

Por isso fui parar naquela rua específica, cujo nome farei questão de ocultar. No entanto, fornecerei todas as informações necessárias para que a encontre por conta própria sem depender de meus caprichos; poderão até parecer insuficientes, mas, para bom entendedor, meia palavra já basta. É uma rua parecida com qualquer outra: tem fachadas convidativas de lojas, alguns bares, lanchonetes e, se me permite dizer, um ou outro puteiro – esses daí não poderei confirmar, mas, caso haja discrição, poderei sim. Se você andar reto o suficiente e dobrar, creio, à direita (faz tanto tempo que não vou lá!), encontrará sessão comercial, toda ela repleta de construções de dois andares ou mais. Seus vidros multicor, luzindo numa mistura de verde-escuro, azul e vermelho, parecem prenunciar grandes tesouros a serem descobertos. Listarei os três edifícios mais importantes, justamente aqueles que figuram na entrada desta “rua dentro da rua”.

O primeiro é uma loja de artigos religiosos, a qual, não minto, me deu e me dá bastante medo. O motivo é simples: Próximo ao edifício modesto, lembro-me de ter visto vendedor e comprador conversando, provavelmente fechando um acordo. Depois de apertarem vigorosamente as mãos, quatro ajudantes, com a ajuda de uma estrutura para que pudessem mover o grande item, saíram de dentro da loja: traziam ídolo gigantesco e dourado de touro humanoide com portinhola na região do ventre. O leitor que sabe um pouco de mitologia saberá que a tal “portinhola” é, na verdade, a porta de um forno, e que aquela era uma estátua de certo deus cananita cujo nome não vou mencionar. Prefiro me eximir de posteriores comentários, pois creio que só isso já basta; a estátua foi enfiada dentro de um caminhão e levada para sabe-se-lá-onde. Espero que, pela intervenção de outros deuses, pagãos ou não, ela nunca tenha sido utilizada com os fins que lhe eram (in)comuns.

O segundo edifício é um café. Quer dizer, o fato de ser um café eu sei - ao contrário do primeiro, já o tinha freqüentado antes. Os preços são baratos e o café-com-leite é delicioso, além de ser agrado visual dos mais grã-finos. A parte cabeluda mesmo é que, em certos dias do ano, parece ocorrer algo como festa-fantasia; sobre tais dias não sei nada, já que não gosto muito de festas. Enfim. Em dada ocasião, que foi separada daquela da estátua pelo espaço de alguns dias, vi cinco pessoas, usando máscaras sorridentes e vestes arlequinais, saírem e correrem loucamente até o final da rua, no que desapareceram. Óbvio, não falo dum desaparecimento literal, pois era noite e recaía neblina pesada sobre o horizonte, mas isso não subtrai a estranheza de qualquer que seja o evento que lá acontece. Mesmo assim, prefiro atribuir aquilo à bebida e não a algum fator mais incomum; no entanto, sendo um café, lá não deveria vender-se apenas café?

O terceiro edifício, que parece bem menos anormal que os dois primeiros (e digo isso, apenas parece) era-me totalmente desconhecido, mesmo que, dada a continuação lógica de meus hábitos, já se possa deduzir bastante sobre a natureza do local. De qualquer modo, falarei das circunstâncias nas quais o encontrei, não apenas dele em si.

Era final de tarde. O sol já se punha no horizonte, tingindo os céus de cor vermelho-alaranjada que, sem dúvidas, se constitui como uma das mais mundanas glórias da humanidade; é alienígena mais alheio que eu aquele que, mesmo tentando ser diferente da média, ousar dizer o contrário. As calçadas, asfaltadas de forma irregular e com várias rachaduras, tornavam-se semelhantes a veias repletas de sangue púrpura, e isto tudo por conta da errática iluminação do entardecer. Por mais que o dia tivesse sido quente como o inferno, fazia, por algum motivo, frio, tanto que comecei a me perguntar se devia ter trazido um casaco. Impelido quase que por um sexto sentido, tentei ver pela vitrine o que o edifício escondia. Ela estava coberta por tipo de cortina espessa e exótica, e por isso mesmo meus esforços foram completamente frustrados.

Antes de resignar-me e ir embora, decidi espiar por uma das janelas, embora esta fosse quase-opaca por conta das cores nas quais estava tingida. Consegui de forma parcial. O que encontrei lá eram várias estantes enfileiradas, repletas de livros dos mais diversos tamanhos, cores e estados de conservação. Na frente de uma delas havia também caixa que servia para mesma função e, bem acima, no teto, a seguinte placa: “Sebo Hydra”. Podia estar fechado, podia estar aberto, mas eu não saberia se não entrasse. Girei a maçaneta e a porta, para minha felicidade, moveu-se – para minha infelicidade, a tentativa de ser discreto falhou, pois a maldita produziu um leve tilintar. Para que o proprietário capturasse possíveis intrusos, verifiquei, bem no topo da parede, a existência dum sino de porta discretíssimo e funcional.

Vaguei como se fosse penetra por entre as estantes; uma coisa que não tinha percebido de início era a extensão do lugar, que parecia infinitamente maior por dentro que por fora. Atribuí isto ao fato das janelas serem de péssimo gosto e confundirem a visão, embora não tivesse descartado fenômenos mais complexos e (se permite-me dizer) anormais em origem. Depois de um tempo, notei atrás de mim certa presença, muito provavelmente devido aos passos abafados ressoando no chão de madeira – como eu estava parado e imerso em contemplações, definitivamente não me pertenciam. Virei-me, sentindo os pêlos da nunca arrepiarem. Era sujeito alto, idoso, de feições não muito esqueléticas, mas mais magras que gordas; seus olhos estavam ocultos sob a ampla aba do chapéu, que lhe projetava abundante tarja preta sobre a metade superior do rosto. Entre os dedos tinha cigarro aceso, ora ou outra levando-o aos lábios, cuspindo longas colunas de fumaça em minha direção. Um tanto assustado, antecipei qualquer coisa que ele fosse dizer:

— Então, senhor… quer que eu saia?

— E por que eu iria querer uma coisa dessas? Aliás, como você sabe qu'eu tenho permissão para querer uma coisa dessas? Posso muito bem ser um cliente qualquer. Você já está me atribuindo, mesmo que de forma sutil, a condição de “proprietário”.

Sua forma de falar era tão brusca que quase beirava a falta de educação. Entretanto, devo alertar-lhe para minha virtude do sangue frio, a qual me impediu de cometer atos impensados de violência.

— Posso dizer uma coisa? — perguntei-lhe, ainda um tanto pasmo.

— Pode.

— Este daqui é o terceiro e último de uma sequência de lugares estranhos. Até agora é o menos estranho deles, então é possível que quem goste de maiores bizarrices não venha aqui. Sobre você ser o proprietário: foi uma conclusão meio espontânea, sim. Pode ser que eu só esteja ficando louco.

— Tenho de concordar. E sim: sou o proprietário.

— Espera, concordar com o quê? Com eu estar ficando louco ou com a minha observação sobre este lugar?

— Com as duas coisas. Posso explicar o porquê disse isso, ou posso não explicar. De qualquer forma — estendeu-me a mão, a qual apertei, não sem antes recordar-me da estátua aterradora — meu nome é Edgar. Edgar Aldebaran.

— Fala-se “Aldebarã”?

— Sim, mas se escreve com um ene, sem nenhum til.

Conforme ele torturava meus pulmões com o cheiro da nicotina, íamos andando e trocando palavras, embora eu só estivesse conversando para poder bisbilhotar a vastíssima quantidade de tomos que o sebo apresentava. No começo, achei-o presença bem excêntrica, até mesmo incômoda; entretanto, comecei a me acostumar pouco a pouco com a insuportabilidade, o que não quer dizer que eu a toleraria além de certo ponto. Edgar fazia perguntas invasivas, as quais forçava incessantemente; uma que fez várias vezes e que já estava me maçando era: “como você encontrou este lugar?”, ao que respondi que, conhecendo esta rua de muitas visitas anteriores, decidi simplesmente dobrar à direita. No entanto, toda vez que eu dizia isso ele balançava a cabeça em desaprovação, repetindo as próprias palavras numa insistência desesperada. Depois da primeira vez, achei que ele estava apenas sendo pedante. Depois da segunda – um velho levemente abilolado. Depois da terceira – minha paciência estava prestes a acabar, tendo ele testado meu sangue frio aos limites máximos. Na quarta, inverti-lhe a pergunta:

— E que diferença faz, caralho?

— Ora, você mesmo disse que essa parte da rua é estranha, certo? Condiz com os outros edifícios e tal?

— Nem tanto, mas não há nada de incomum nisso.

— Tem certeza? — disse ele, forçando um ar de mistério — E você nunca viu nada de incomum acontecer por aqui?

— Ver eu vi, ué — respondi sem grandes cerimônias — mas não chega a ser algo tão impressionante assim. Cidades são agrupamentos de pessoas, e muitas dessas pessoas têm titica na cabeça. Vai saber.

— É, é mesmo. Talvez você esteja certo — novamente tentou me atazanar com aquele maldito cigarro, sabendo, talvez, que o cheiro me dava engulhos — mas, sabe, sei lá, meu jovem. Recentemente venderam um item bem, hã… bizarro aqui do lado, então pode ser que…

Quando a imagem da estátua voltou à minha memória, não deixei de arregalar os olhos.

— Aha! — ele exclamou — então você viu, não é mesmo? E então, o quê acha? Parece simplesmente algo incomum para você?

— Uma parte minha diz que sim. Pessoas estranhas que tem dinheiro vão, obviamente, gastar o dinheiro com coisas estranhas.

— A questão não é essa. Por isso insinuei que você estava ficando louco, meu caro. Oficialmente, esta parte da rua – que é praticamente uma rua separada, aliás – não existe. Vamos. Tem uma poltrona lá no fundo; deixe que eu lhe explique melhor.

Conduziu-me a local afastado das estantes, bem nas entranhas daquele moribundo sebo – as paredes úmidas, as luzes multicor que pareciam combinar perfeitamente com as vidraças… era como se, em gigantesca vastidão de um semiescuro, brilhassem as vagas formas de um arco-íris. Sentamo-nos, cada um em poltrona de courvin posicionada nos lados opostos de pequena mesa de centro onde, aliás, Edgar colocou seu chapéu. No início, eu estava descrente que ele partilharia informação valiosa; na verdade, estava descrente que ele faria senão mais perguntas irracionais. Contudo, tenho muito de valorizá-lo, não porque necessariamente nutriu ou pareceu nutrir de minhas (ou, a levar para o ângulo estritamente pessoal, suas) suspeitas sobre origens extraterrestres, e sim porque trouxe minha consciência para planos distintamente superiores. A primeira coisa que fez foi repreender-me, até de forma um tanto violenta, sobre o que é realmente uma “rua”. Disse-me que aquela não era parte da rua anterior, não estando registrada em nenhum mapa e não se fazendo acessível a pessoas comuns. Pelo que ele me falou, era ponto-cego, o que significa que se encontrava num frágil limiar entre duas realidades distintas.

— Então, o que eram aquelas pessoas comprando a estátua? Digo, o que elas pretendem fazer com aquilo?

— Sei lá — sua resposta foi frustrante, confesso — minha intuição diz que é melhor nem querer saber sobre, pois é bem capaz que eu fique estarrecido. De qualquer forma, o ponto não é esse – o ponto é o que estou lhe dizendo aqui e agora. Você não é normal, senão não teria entrado neste lugar. Aquelas pessoas que você viu, sejam as que compraram o produto quanto as que o venderam, conhecem o segredo destes espaços. Pelo visto, por mais que não tenha noção consciente, você também conhece, mesmo que não em totalidade. Através deles, outros mundos se fazem acessíveis; para alguns em menor extensão, para outros, em maior.

— Mas por que correlacionar isso com a loucura, então?

Perguntei-lhe, sendo esta uma das partes que, excetuando todo o resto já impressionante, mais me deixou com dúvidas. Até porque, mesmo tratando-se de mim, não acredito que seja insano; deixei que você, leitor, julgasse-me e tirasse as próprias conclusões, e o que se revela na narrativa até agora é alguém que tem perfeito controle de si. Um sujeito realmente louco, caso fosse pressionado com tantas perguntas, provavelmente pegaria uma faca e tentaria matar de forma bem violenta o inquiridor, o que não estava de acordo com meu curso de ações. Bem, para falar a verdade, eu não tinha nenhum instrumento cortante disponível, confesso - isto tornaria, a despeito de quaisquer que fossem meus méritos em questão de autocontrole, simplesmente inviável para mim perfurá-lo. No entanto, temos de reconhecer: o máximo ao que cedi foi uma palavra de baixo calão. Admirável, não?

— Bem, — Edgar, esmagando o cigarro num cinzeiro, deixou escapar pelos lábios pequeno risinho — talvez eu tenha sido um pouco duro em minhas expressões. Mas acho que você entendeu; se não entendeu, de qualquer forma, deixe-me explicar: é simplesmente uma questão de perspectiva. Não tem necessariamente relação com esperteza, nem mesmo com pensamentos coerentes, digamos. Tem a ver com uma perspectiva radicalmente diferente. Eu não sei qual é esta porque não estou na sua mente, então é você que vai me dizer. Algum pensamento fora do comum há - é o que todos que acessam pontos-cegos compartilham.

— Promete que não vai me zoar?

— Prometo. Se você soubesse quais são os meus… Você deve ter notado que sou velho. Em outras palavras, conheci gente que dava arrepios em qualquer um, eu incluso.

Por mais que ele me tivesse dito que eu estaria isento de julgamentos, senti ansiedade a alastrar-se no peito, o que provavelmente se constituiria como obstáculo na hora de expor meus pensamentos. Respirei fundo e, liberando o ar, cri voltar-me parte do autocontrole. Ao menos assim eu esperava, porque estava prestes a realizar tarefa bem árdua.

— Então… de certa forma, isto é, através das conclusões as quais eu cheguei, isto é, conclusões muito… muito, bem, assentadas na minha observação e nas minhas pesquisas — vendo que minha tentativa era vã, fiz uma longa pausa — acredito que tenho… origens extraterrestres.

— Mais alguma coisa? Seja mais específico.

— Acho que descendo de uma espécie de artrópodes.

Edgar arregalou a sobrancelha, ao passo de que pensei que ela pularia de sua testa e tentaria me atacar.

— Eu… eu disse que era incomum — alertei-lhe.

Edgar, levantando-se de sua poltrona, pediu que eu esperasse um pouco. Fiquei inquieto ao vê-lo ir na direção das estantes, principalmente porque, a despeito de acreditar com inabalável firmeza que éramos os únicos presentes, a escuridão pode produzir, ainda mais em mentes impressionáveis como a minha, certos efeitos desagradáveis. Depois de algum tempo, retornou ele com item que constatei tratar-se de um livro; ou, para ser mais preciso, bojudo calhamaço. Dizendo-lhe que eu não estava vendo quase nada ali, saímos do fundo; desta vez, ambos fomos à região frontal do sebo, aquela na qual antes estávamos. Com as fortes luzes amareladas iluminando-nos (o multicolorido parco ficou para trás), constatei tanto a cor quanto o título: Mistérios Insectais. A capa agradou-me bastante e achei que ficaria bonita na prateleira — era tingida em carmim e decorada com vários arabescos dourados. Entretanto, por mais que eu tivesse me interessado, quis indagar Edgar para ter certeza que aquilo poderia saciar-me as dúvidas.

— Você tem certeza que vou encontrar o que procuro aqui?

— Totalmente. Depois venha dizer suas descobertas. Mas ei, enfie este livro na mochila. Não saia com ele por aí à vista de meio mundo.

— É gigantesco, ora. Não vai caber.

— Não importa. Enfie com jeitinho, se isso lhe parecer mais viável. Mas enfie.

— Qual o preço? — perguntei-lhe, mais por obrigação do que por vontade de pagar.

Edgar me olhou de cima a baixo antes de finalmente dizer:

— Sai de graça. Gostei de você. Mas ouça bem: é necessário ter cuidado, e não estou falando de um simples cuidado. Estou falando de, bem… não sei; o ponto é que você precisa imaginar que isto é um livro escrito em páginas de ouro, mas não porque realmente o é, e sim porque ele possui informações que são bem perigosas. Pode não parecer, mas, escondido em algum lugar deste meu humilde sebo, eu tenho uma .12 carregada, enxofre, giz, entre outras coisinhas. Não estou tentando instilar medo nesse seu jovem coraçãozinho, de forma nenhuma; porém, acho que você gostaria de saber que um dos meus últimos clientes foi, no exato momento em que cruzou para fora da porta, atacado por criaturas ameaçadoras, sombrias, que saíram da parede e arrastaram-no para um lugar que sei não ser muito agradável.

Sem saber o que lhe dizer, assenti com a cabeça e, um tanto relutante, cruzei a entrada; a porta fez o mesmo som que havia feito ao entrar. Recobrando subitamente minha perspicácia verbal, contudo, virei-me e falei, antes da porta fechar-se completamente:

— Veja bem, sr. Aldebaran: isso aconteceu com ele porque o livro provavelmente estava amaldiçoado. Se este lugar fosse assim tão visado, você provavelmente teria mais clientes, não acha?

— Bem, agora que você diz…

Antes que ele pudesse responder-me, a porta se fechou. Conforme tomava o rumo inverso e ia para minha casa (fazendo questão de, ao aproximar-me da loja de artigos religiosos, apertar o passo como se estivesse sendo perseguido), não deixava de sentir a silhueta grossa do item adquirido insinuando-se contra a mochila e, consequentemente, contra as minhas costas. Você, leitor, que creio já ter carregado um objeto pesado alguma vez na sua vida, deve imaginar que isto me impedia de alcançar velocidade plena. Contudo, quase como se por benção de Mercúrio, fui rápido o suficiente para deixar os arredores e para cruzar, também, as partes mais complicadas desta cidade. De fato Porto Claro não é para amadores — além de fenômenos como os mencionados, não coisa que se aconselhe ficar andando por aí depois que o sol se põe. Simultaneamente à teoria de que descendo de insetos alienígenas, cultivo também a teoria de que a região onde esta cidade foi fundada, por alguma razão (ou maldição) em específico, multiplica os assaltos e outros crimes. Talvez isto se deva apenas ao fato de que este é, apesar de tudo, o estado de São Paulo.

II.

A minha leitura foi absolutamente produtiva; de certa forma, estive esperando por aquele livro durante toda minha vida, sendo instigado e (confesso) torturado pela expectativa de um dia encontrá-lo. Conforme folheava as páginas amareladas e repletas de manchas de aspecto sugestivo, ficava cada vez mais claro para mim que não pertencia àquele mundo. Confirmavam-se, pois, minhas suspeitas; mais que elas, confirmava-se o curso de minhas ações, que, novamente confesso, tinha sido bem tortuoso e específico. Não posso deixar de transcrever, para o leitor interessado naquilo que estou narrando, um pouco de minha origem e, óbvio, da origem meus conterrâneos. Fiz adaptações e omissões onde eram necessárias, mas gosto de pensar que retive o sentido e as informações mais cruciais:

[…] inclusive, é necessário que aquele que crê descender de qualquer espécie insectal tenha, em dado momento, se questionado sobre as próprias origens. É importante compartilhar a seguinte informação: nas sendas artrópodes, prefere-se criar filhotes e infiltrá-los na Terra de forma específica, especialmente concebida para que não existam perigos de descoberta das operações conduzidas, ou que, em alternativa, não crie ilusões de pertencimento a um passado inatingível e, salvo certas exceções, impossível de aceder. A suspeita, pois, é inteiramente passível de ocorrência, mas não o é adquirir as lembranças do processo de pré-encarnação. Diz-se encarnação, aliás, não no sentido estritamente espiritual da palavra, e sim físico; após o nascimento do bebê, quando repousa em seu berço, um drone disfarçado dos tão hábeis artrópodes, munido de ovipositor artificial, depositará o filhote no ouvido, onde, sendo transportado ao cérebro, desenvolver-se-á em simbiose com o corpo que habita, sem matar ou sobrepor a consciência da criança. Deste modo, embora nutra o impulso e a consciência sensível e superior dos Grandes e Primevos Insetos, ela ainda será, ao menos em parte, humana. Ocorre que desta hibridização nasce a possibilidade de conquista e defesa da Terra, defesa esta que deverá impedir sua conquista pelos reptilianos […]

[…] para que se sanem todas as suspeitas e que se tornem certezas ou mentiras, deve o sujeito reunir os seguintes elementos: uma folha de papel, um espelho, uma vela e uma caneta, que deve ser preferencialmente BIC e preferencialmente vermelha (não sei ao certo o motivo, mas ela parece funcionar melhor que as outras testadas). Riscando o Glifo dos Invertebrados na folha, deve-se queimá-la enquanto se posiciona diante do espelho; se tudo ocorrer corretamente, a imagem do símbolo desfazendo-se deverá destrancar uma visão da aparência verdadeira do sujeito, que, espera-se, seja distinta de sua aparência normal. Caso o sujeito seja humano, nada lhe acontecerá senão a constatação de que perdeu tempo.

Não vou dizer que sou versado em feitiçaria ou qualquer coisa do tipo, mas a maioria dos grimórios, ao menos pelo que sei, são bem menos generosos com a facilidade de aquisição de seus materiais, bem como os materiais em si. Agradecendo mentalmente aos deuses por não ter de matar um galo preto ou coisa semelhante, tratei de reunir tudo aquilo que foi-me indicado. Confesso-lhes: durante o processo, a maior dificuldade que tive foi em desenhar o Glifo, símbolo relativamente complexo, em nada semelhante aos glifos planetários que nos podem vir à mente; em formato e composição geral, lembra mais os selos da goécia com suas cruzes, seus pequenos círculos e ondulações. Depois de três tentativas, finalmente consegui reproduzi-lo com maiores níveis de adequação; arranjando isqueiro no lugar da vela, fui, empolgado e querendo de imediato resultados, ao espelho do banheiro.

Acendi as luzes, respirei fundo e ignizei a chama, que espalhou-se pela folha em apenas alguns instantes. Enquanto eu a afastava do corpo para que acidentes não ocorressem, o processo de cremação atingiu o glifo; no exato momento em que estava sendo consumido, repentinamente as cores nas quais estava pintado alteraram-se: o símbolo passou a emitir forte iluminação verde, aludindo, em tom, às fotos de satélite da Irlanda. Por breve momento, antes que eu tivesse reações quaisquer, a imagem no espelho alterou-se, sim! Minha pele tinha-se tornado igualmente verde, e, em certas partes, camadas pareciam fundir-se (camadas, não escamas - falta-me a precisão da palavra certa, mas não sou réptil, valha-me deus!); meus olhos, sem pupilas e de tom âmbar, lembravam aqueles dos gafanhotos, e consegui ver, sobre minha cabeça, um subtil par de antenas. A imagem foi tão breve que não tive tempo para analisá-la, mas pensei que era melhor assim. O cheiro, é provável, geraria incômodo por parte de minha "mãe" - tal termo tornava-se cada vez mais inadequado conforme ponderava minhas verdadeiras origens. Depois de limpar a bagunça e jogar o resto da folha fora, dirigi-me ao quarto e novamente me imergi na leitura a qual antes me dedicava.

Por conta do tamanho do livro, tive, é claro, que dispender uma quantidade razoável de tempo para finalizar a leitura. Entretanto, uma das virtudes que, creio, deu-me o sangue insectoide, é justamente aquela de ter concentração absolutamente incomparável; se afazeres ridículos como aqueles da escola não se interpusessem no meu caminho, eu teria terminado em quatro ou três dias. De qualquer modo, não apenas li, como também tratei de fazer uma série de anotações sobre as partes mais importantes. Para acrescentar, treinei o desenho do Glifo até que eu o tivesse memorizado por completo; inclusive, se me for permitido dizer, meu desenho eclipsou aquele impresso nos Mistérios, algo pelo que não me deixei de gabar mentalmente.

Entretanto, tenho de dizer que nem tudo são flores. Logo após terminar a leitura, notei coisas estranhas em minhas peregrinações pela cidade. Óbvio, não havia mais tantos motivos para sair por aí, só que eu me considerava flaneur brasiliano, impelindo-me à tais atividades quase que em involuntária propensão. De qualquer forma, comecei a ter a sensação inquietante de estar sendo observado, por mais que fosse incapaz de dizer por quem. Primeiramente, descartei isto como parte de efeito mental bem elaborado, desencadeado pelo fato de acreditar, mesmo sem intencionalidade, que estava em posse de informações perigosas. Esta minha suposição foi pelo ralo quando, esperando um inconveniente semáforo fechar, segui com os olhos silhueta que me acompanhava, e que, percebendo-me (hah!), prontamente desviou o olhar. Algo me dizia que devia tratar-se de reptiliano (existiam! de acordo com o que li), já que ninguém de minha senda seria assim tão indiscreto e inconveniente. Por isso, decidi que traria comigo um canivete; se ele tentasse investir, iria transformá-lo num espetinho de lagarto.

Crente de que não seria seguido até lá, optei por ir novamente ao Sebo Hydra; queria conversar com o único que era capaz de entender-me e compartilhar de minhas dores. Até porque o máximo que eu conseguiria ao dizer para mundano que estava sendo perseguido eram aqueles tolos bordões: "Chame a polícia", "ande com uma arma", o que, como lhe relatei, já fazia. Mesmo percurso, mesmas três bizarras lojas com suas janelas multicor ao modo dos vitrais, mesmo apertar de passo ao passar pela loja de artigos religiosos. Por fim, neste local que apenas uns poucos poderiam acessar, defrontava-me novamente com a repelente fachada do sebo. Sem cerimônias e sem o receio que tive da primeira vez, entrei. Qual foi a surpresa ao deparar-me com todas as prateleiras reviradas, algumas caídas, como se alguém tivesse invadido para procurar… o livro. Meu sangue subiu e o coração descontrolou-se. Puxei o canivete, preparado-me para furar a garganta de qualquer filha da puta que lá estivesse.

Rumei para os fundos, mais iluminados que o normal. Lá, perto da poltrona onde conversávamos, encontrei o algoz: era um homem todo vestido de moletom preto, balaclava escondendo-lhe a face. Ajoelhado e com uma arma apontada para a cabeça, jazia Edgar Aldebaran, fitando o chão, as mãos amarradas atrás das costas. Não sei se foi apenas impressão ou não, mas os olhos do maldito não eram normais; por trás daquele tecido preto que lhe cobria o rosto, exibiam-se numa cor vermelha e fulgurosa, com pequenas fendas que pareciam ser as pupilas. Sim! De súbito, dei-me por correto: era realmente um reptiliano.

— É melhor soltá-lo. Não tenho medo dessa pistolinha aí. Se bobear, nem te conto onde vou colocá-la. Imaginou? Então…

— Você não faria isso, pode ficar calmo. Não vim aqui para acabar com a vida deste literato fracassado chamado Edgar Aldebaran. Só vim para pegar uma coisa, sabe? Deve saber. O livro. Aquele livro.

— Eu avisei — disse Edgar com tom abatido — essas obras não são quaisquer obras. O preço por tê-las é este, e por isso não vendi. Já se paga muito caro.

— Silêncio, humano sujo! Esta conversa não lhe diz respeito. Recolha-se à sua insignificância.

— Posso dizer uma coisa? — perguntei-lhe, desatemorizado.

— Pode, diga essa coisa. Diga e tome cuidado com o que vai dizer.

— Por que você se sente no direito de chamá-lo de humano sujo? Uma lagartixa como você?

— Quanto preconceito! — exclamou sarcasticamente — veja bem, meu colega. Você deve ter lido sobre nós, mas boa parte disso é mentira. Não desprezamos gente como você, nah. São vocês que se opõem ao extermínio humano, por algum motivo. Daríamos excelentes aliados. Quero o livro porque ele difama nossa espécie, nos fazendo parecer monstros sem coração. Estão errados.

A despeito do nervosismo, comecei a rir profusamente. Não acreditei naquelas palavras, nem consegui processar tão grave duplipensar.

— Qual a graça, porra?

— É curioso que você se ofenda com as descrições do livro. Quer dizer, mesmo que tenha acabado de dizer que deseja exterminar a humanidade. Como pode?

Jogando Edgar para o lado, a arma foi apontada, desta vez, em minha direção. Não sei se foi outra bênção de Mercúrio (ou de Marte, dado o caráter de minhas ações posteriores), mas creio que sim; complementar a isto, senti algo como um poderoso instinto de sobrevivência, reação que fez-me correr rapidamente para uma das prateleiras mais próximas; tiros foram disparados na minha direção. Conforme ele se deslocava, gritava as seguintes palavras:

— EU QUERO O LIVRO, PORRA! ENTREGUE O LIVRO!

Ele atirou mais algumas vezes, mas nada que tivesse me acertado. Por fim, silenciando meus passos e prevendo seus movimentos mais prosaicos, preparei-me para a maior das investidas. Tirei vantagem de uma ocasião onde tinha-se virado; foi aí mesmo que saltei em cima dele, dando uma série de estocadas em suas costas. Grunhiu e virou-se, pior das decisões. Mirei em seu pescoço, não na jugular especificamente, mas foi aí que acertei; surpreendentemente, até a diferir da esmagadora maioria dos répteis, seu sangue era verde, não vermelho. Jatos e jatos mancharam os caríssimos e raros volumes nas prateleiras não-reviradas. Por fim, desfaleceu, indo ao chão enquanto uma poça do líquido estranho e viscoso assomava-se sob seu corpo. Para garantir e por estar com um pouco de raiva, chutei-lhe a cabeça umas cinco vezes, no que senti certas partes do crânio audivelmente partindo-se. Fui de imediato checar o estado de Edgar; recuperado daquilo como se fosse corriqueiro, estava sentado na poltrona fumando. Aparentemente, conseguira se libertar das amarras que prendiam seus pulsos.

— Tudo bem contigo?

— Sim, tudo excelente, meu jovem. Obrigado por acabar com esse merda.

— Você nem pensou em usar a .12 que disse que tinha?

— Foi muito rápido, né? Ele já chegou com a arma apontada. Não dava para reagir.

— Quer que eu devolva o livro? — perguntei-lhe, almejando, de certa forma, redimir-me por tê-lo feito passar por riscos desnecessários.

Edgar deu um risinho.

— Não, não. Pelos deuses. Pode ficar com essa bucha. Só me ajude a limpar e organizar tudo.

Dito e feito. No curso de duas horas mais ou menos, conseguimos levantar, categorizar e desvirar tudo que o invasor havia bagunçado. As manchas não foram totalmente retiradas, mas Edgar quis aliviar meu perfeccionismo. Tirando isso, restava apenas o cadáver do reptiliano, que jazia ainda no chão. Não tinha começado a feder; entretanto, certa intuição me dizia que não demoraria tanto tempo.

— O que você vai fazer com o corpo? — perguntei-lhe, intrigado.

— Cortar em pedacinhos, essa será a primeira coisa. Depois, vou levar para o dono da loja aqui do lado. Se eu lhe molhar a mão, com certeza que ele vai usar uma das estátuas para ajudar a acabar com os restos mortais.

— Então aquela não era a única?

— Claro que não. A demanda é alta. Os cartagineses e canaanitas nunca deixaram de cultuar seus deuses. Nunca.

Decidimos mudar de conversa. Falei-lhe de minhas estupendas descobertas, ao que apenas reagiu com meneios de cabeça, permanecendo em silêncio quase tumular. Por fim, depois de ir até um dos cantos ainda escuros do sebo, vi-o abrir um cofre. Retirando algo de seus interiores, veio até mim. Trazia um manuscrito sem capa ou identificação em mãos, o qual, tendo previsto que talvez me causasse problemas, relutei em segurar.

— Pegue-o.

— Não sei se quero.

— Não estou dando opções. É melhor pegar.

Sem escolhas, segui suas ordens.

— Posso saber o que é isso? — estava intrigado, porque não parecia nem sequer um livro publicado. Era amador, de certa forma, quase produção caseira. Na verdade, devia tratar-se de manuscrito, pois o título, torto, estava escrito em caligrafia e tinta azul.

— O manifesto. Não qualquer manifesto, mas o manifesto.

— E o que eu vou fazer com um manifesto?

— Vai ler, porra. Vai abraçar e vai viver o manifesto. Vai praticar o manifesto. Vai respirar o manifesto.

Ambos rimos.

— Você vai levá-lo até o Regente de Aldernea — ele disse, por fim.

— Aldernea?

— Sim, Aldernea. É meio estranho, mas é um site. Só que não é um site comum. É um portal para outra dimensão, um vórtice, um rasgo na realidade, tal qual esta rua. Você saberá o que digo quando encontrá-lo.

— Bem… Okay, não questionarei seus motivos. Mas tudo vai ficar bem contigo?

— Não sei. Vou sumir por um tempo. Os reptilianos provavelmente tentarão me matar, encherão o saco. Sorte que eu tenho contatos, vários deles. Isso mesmo. O "literato fracassado" aqui fez parte de uma penca de ordens secretas. Sou um misteriarca; conheço uns trocentos camaradas, adeptos, que despenderiam tempo e dinheiro para me ajudar.

Sabendo que aquela talvez fosse a última circunstância na qual eu o veria, despedi-me. Antes de atravessar a porta com o manifesto enfiado no largo bolso interno do casaco (foi repentina a queda de temperatura), disse-lhe:

— Obrigado, Edgar. E, aliás, nunca te disse meu nome. Não meu nome mundano, mas o nome que o livro me revelou: Caeliferus. Mas você pode me considerar um "Frater" Caeliferus.

Voltei para a casa, fechando bem a porta e checando vários dos cômodos para a presença de possíveis invasores. Subindo em direção ao meu quarto, garanti que, ao chegar nele, estivessem as janelas bem fechadas e as cortinas bem estendidas. Minha "mãe", tendo saído para trabalhar, provavelmente se incomodaria ao descobrir que a tranquei para fora. Contudo, fiz isto pensando que ela teria as chaves consigo. Apaguei as luzes; a única ainda por brilhar era a do monitor. Sentei-me e pesquisei "Aldernea" no Google, expectante que encontraria, de primeira, os resultados. Infelizmente, o maldito corretor sugeriu-me pesquisas para a palavra Alderney, uma ilha do canal da mancha que pouco me interessa. Corrigindo-o, entretanto, me deparei com o seguinte endereço: aldernea.neocities.org. Cliquei. Diante de mim, uma aberrante página de aviso se mostrava, repleta com confusos padrões em azul escuro. As cores eram vívidas, predominando o vermelho, verde e laranja; imagens pixelizadas dançavam diante dos olhos. Um busto carmim de Adriano observava qualquer que fosse a coisa. Abaixo do retângulo arredondado encontravam-se dois botões: um linkava para a página do Neocities (pelo que entendi, uma espécie de serviço de host misturado com rede social) e o outro para a seguinte página do sítio.

Cliquei, óbvio, no segundo. Rufem os tambores; diante de mim, além de gigantesco título imitando o neon em cor e brilho, mostrava-se símbolo laranja de Mercúrio sobreposto aos corredores dum lugar que parecia biblioteca. Inconscientemente, sabia que era esta a imagem o verdadeiro link (não se fazia disponível, contudo, através do simples clique de um mouse), por isso nem intentei navegar para as páginas elencadas na barra lateral. Após um tempo, percebi que o símbolo começou a pulsar, pulsar, pulsar, quase como se estivesse vivo. Sonolento, senti a consciência deslocar-se do corpo, sendo absorvida por ele. Transformou-se num túnel tridimensional pelo qual fui impelido de forma automática e, pela ausência dos demais sentidos que não a visão, quase incorpórea. Depois de desesperar-me um pouco, finalmente senti voltar a audição, tato, olfato e paladar — não provei nada, porém senti a amargura tomar a boca.

Estava num lugar grande; na verdade, gigantesco. Como na imagem, era todo sustentado por arcos e tinha dois andares; encontrava-me no primeiro. Os padrões converteram-se em tridimensionais, o que conferia ao local um aspecto de lisergia profunda. Em parte que não se fazia visível antes, vi um trono no qual se sentava figura relativamente intrigante. Supus, da distância, que tinha a minha idade. Estava todo vestido de preto e tinha olhos penetrantes por trás dum par modesto de óculos. Olhos realmente penetrantes, ao passo de que começaram a me incomodar. Seus cabelos abundavam em comprimento e quantidade, parecendo cortados, daquele ângulo, em alguma variação hermética de mullet. Aproximei-me.

— Quem é você? — ele disse, fazendo uma das perguntas mais previsíveis de todas.

— Caeliferus. Frater Caeliferus.

— Bem estranho seu nome, ou título, melhor dizendo. E o que é que você quer, posso saber? Aliás, de onde você veio? Não recebo tantos visitantes.

— Só vim entregar uma coisa.

— Não, você não entendeu ao certo. Quem vem aqui não vem só entregar uma coisa. Vai ficar comigo por um tempo, bonzão. Bem-vindo a Aldernea.

— Ora, claro que não vou. Sabe, eu respeito sua orientação e tudo mais, só que…

— Hã? Por Deus! Não estou falando de "ficar" nesse sentido. Pode apagar esse foguinho aí. Só me diga quem te enviou. Foi Edgar?

Assenti.

— Então é porque deu merda. Lembro que ele tinha falado algo sobre um manifesto e tal, mas achei que manteria trancafiado à sete chaves. Aconteceu alguma coisa mesmo ou estou ficando louco?

— Aconteceu. Edgar foi atacado por um reptiliano. Disse-me que vai deixar o sebo, por enquanto. Vai sumir no mundo.

— Enfim, de boa, então. Dê-me o manifesto.

Aproximei-me. Quando estava para entregá-lo, contudo, algo me demoveu da ideia e não deixei que colocasse as mãos no manuscrito.

— Espere, você é o Regente ou é outro daqueles malditos de sangue frio? — perguntei, com um tom meio desesperado.

— Sou seu pai, na verdade — ele respondeu jocosamente.

— Estou falando sério. Você quer ou não quer o manifesto?

— Eu não quero nada. Você que veio me entregar, não o contrário. Disse que quero alguma coisa? Não, não disse. Pode decidir aí. Mas sim, sou o Regente. Quem mais poderia ser?

Mais rude que Edgar, mil vezes mais rude. Entreguei-lhe o Manifesto e, antes de perguntar como podia voltar, ouvi o Regente dizendo:

— Espere. Não vá ainda. É melhor você ficar por aqui, mesmo. Este não é o único lugar de Aldernea, longe disso.

— Tudo bem, mas e a minha família, minha casa, minha vida fora daqui?

— Bem, Edgar não é um atropoidal, isto é, alguém descendente dos Primevos Insetos. Então, se ele foi atacado, a única pessoa, o único motivo pelo qual isso teria acontecido é você. Acha que pode viver em sociedade depois de uma coisa dessas? Não pode, cara. Digo isso sem raiva, não estou nervoso contigo. Vão querer sua cabeça, ainda mais se tiver matado um deles. Matou?

— Sim. Esfaqueei com um canivete.

— Então! Pode esquecer. Esse lugar aqui é chamado de Santuário. Não têm livros; a Biblioteca é outra, as estantes só possuem projeções holográficas. Aqui você vê algumas coisas, umas bizarrices e tal. É tipo um pedágio. É necessário passar por aqui caso se intente acessar o restante de Aldernea. Mas Aldernea é maior que isso, sabia? Bem maior. Estamos na capital, Alderamin. Se você concordar, a gente faz um tour, mas não antes de eu ler e guardar esse manifesto. Certo?

— Quer saber… Sim. Agradeço a você por isso, Regente. Aliás, qual seu nome?

— Alek, ou Aleksander, se preferir. É um pseudônimo, todavia serve idealmente aos meus propósitos.

Aleksander ficou quieto, dirigindo toda a atenção às amassadas folhas de papel que segurava. Observei-o por um tempo, pensando que o manifesto era, na verdade, maior do que realmente era; de vez em quando, a despeito do óculos, cerrava os olhos, talvez por conta de rabiscos e partes graficamente ininteligíveis. Quando ia sentar-me no chão, um tanto entediado, vi-lhe mudar a posição, levantar-se outra vez do trono e, empolgado, exclamar:

— Terminei de ler! — disse-me, como se fosse esta impressionante conquista. No final das contas, nem era assim tão grande.

— E aí?

— Pra ser sincero, não entendi bulhufas. É prosa poética. Não sei se há uma mensagem decifrável. Parece-me meio subjetivo como todos os poemas, sei lá.

— Será que não foi essa a intenção? — perguntei-lhe, um tanto incrédulo com tais conclusões. Afinal, ele insinuava sutilmente que tudo não passava de acidente, quando talvez fosse efeito calculado.

— Pode até ser, só que isso não é coisa que combine com manifestos em geral. Vou dar um exemplo, tipo, o Manifesto Futurista. Ele tem uma perceptível veia poética, mas é um manifesto. É claro. Não tem essa penca de adjetivos, de floreios que, num poema, são excelentes, adicionam bastante, mas que tornam o manifesto um tanto críptico. O que ele manifesta? Não sei. Teremos de ler com mais calma.

Assenti com a cabeça. Quer dizer, provavelmente ele estava certo. Por mais que sua fachada externa fosse de tamanha rudez, talvez por estar em lugar onde podia manifestar-se livremente, Aleksander, ou Alek, como preferiu ser chamado, mostrou que era mais gentil do que nossas superficiais interações fizeram parecer. Ofereceu-se não apenas para me guiar à regiões além daquela como, também, para explicar-me a trágica situação na qual estava seu reino; ou, como corrigiu depois, república. O que contou, — de forma bem articulada e com certa dramaticidade — era que, por mais que tivesse sob seu controle, em teoria, território que em tamanho se equiparava ao da península itálica, só se estendia o controle efetivo sobre a capital. Todo o resto era aparentemente impossível de trespassar, (barrado por um tipo de névoa), então ele tentava, com certa regularidade, investir contra ela. Infelizmente, até aquele momento não teve sucesso.

CONTINUA...