O Ideaplano

Por Frater Paragon

Eu poderia começar isto de muitas formas distintas; poderia introduzir-me ou, se calhasse mesmo, falar das peripécias que fiz, farei ou que deixei de fazer. Contudo, este não é o espaço correto para coisa dessas. Além do mais, eu nem chamaria este texto de uma narrativa - talvez consista mais de ensaio, ou um de ensaio-narrativa, já que o objetivo primeiro é explicar um conceito, e apenas depois tratar de acontecimentos interpretados sob a lente de minha perspectiva particular. De todo modo, apesar desta ordem, não é desejo meu ser imparcial - com a idade vem a Razão, e o que a Razão me diz é que não se pode escrever nada sendo imparcial. Como um texto consiste apenas de exposição escrita de pensamentos e emoções, dar-lhes verniz de imparcialidade não é incorreto apenas, mas contraproducente. Dane-se o objeto. O que importa é a minha visão sobre ele.

Mesmo que introduzir-me não seja algo preterido, falarei um pouco de meu passado, já que isto servirá para elucidar elementos posteriores da narrativa. Hoje, sou velho; ao menos considerando-se puramente a idade psicológica. Ontem, eu era novo, e fiz uma pletora questionável de atividades. Como alguns podem imaginar por eu estar aqui em Aldernea co’a pena em mãos (totalmente metafórica, mas existe), fui poeta; agradava-me explorar a exposição estética de conceitos. Era divertido, mas quando se senta numa cadeira, a mente desesperadamente tentando produzir algo (e muitas vezes logrando, mas este detalhe não convém), os olhos forçados pela escuridão, somente guiados pela luminária, a mão trêmula, o coração palpitante, filho da caféina, os dedos segurando um lápis e garrancheando a folha, nascem ilusões de grandeza. Eu queria ter fama, e a fama conduziu-me a criar um grupo; o Grupo dos Sete, como nos chamávamos. Éramos sete. De repente, éramos seis; depois cinco; depois quatro; três; dois; um.

Este um era eu. Eu fui o único que sobrou. Nós não éramos necessariamente os melhores poetas, mas tínhamos as mais prodigiosas ambições. Queríamos tomar de assalto os céus, queríamos que nossos nomes ressoassem por milênios. Ridículo? Agora vejo isto; na época, não o via. O brilho de meu próprio esplendor ofuscou a Razão que hoje é-me instrumento; o brilho de meu Ego, cuja obliteração foi nada senão necessária para que eu recobrasse a visão. Entretanto, não trata-se isto de um trabalho iniciático: não foi a Ordem espúria de que fiz parte a responsável por destruir meu Ego. Ao menos não totalmente. Apresentaram-me um novo paradigma de pensamento, algo que eu tinha de compreender; a forma, e não o conteúdo deste paradigma, foi a responsável.

Eu lembro. Meu Grão-Mestre, sujeito misterioso, de ar soturno e grave, com olhos escuros penetrantes, alto - não somente de físico, mas de conhecimento (o que permitiu-lhe ser grão-mestre, em primeiro lugar) -, conversou comigo. Sentava-se numa poltrona reclinada e tinha xícara de café em mãos, que bebericava em espaços de tempo irregulares. Havia pequena mesa redonda entre nós; ao meu lado, janela arqueada ao modo francês. A luz penetrava por entre vermelhas e espessas cortinas, mas não as podia superar. Sobre a mesa, um maço de papéis - coleção minha de poemas, que pedi que analisasse -, antes organizado, tivera a ordem das páginas alteradas - algumas folhas jaziam aqui, outras lá. Seus olhos pareciam perfurar os papéis como fossem par de flechas.

— São seus os poemas? Gostei bastante deles — disse-me enquanto desfrutava do café — imagino que os tenha conseguido publicar em vários lugares, não?

— Então, sobre isso… nem tanto.

— Ah, mas não deixe que isto faça você pensar que não são bons. Nos tempos atuais, nem sempre a qualidade vai ser reconhecida. Na verdade, nem antigamente era. Alguns poetas só se tornavam célebres depois da cova.

— Desculpe dizer, mas isso não me soa muito reconfortante.

Naquela época eu não o conhecia direito, e nem sabia do que se tratava ao certo ser um Misteriarca. O conforto - que surgia a partir do reforçar de minhas próprias concepções - parecia objeto a ser buscado por todos os meios, almejado em todas as manifestações, por mais insignificantes ou transitórias que fossem. Era, tenho de admitir, alguém iludido pela vida; sentia que devia ter mais do que já tinha. Mais que apenas a glória (herdada do berço, tive este privilégio), eu queria a outra glória, aquela imaterial.

— O objetivo não é ser reconfortante, é ser real. E a realidade é esta. Eu também era assim no passado, em relação à minha própria área. Também me decepcionei grandemente quando outros conseguiram aquilo que não consegui, mesmo quando eu os excedia.

— E isso não te deixou nervoso… inconformado?

Perguntei-lhe, vendo um sorriso - coisa relativamente rara - formar-se em seu rosto.

— É claro que sim. Não estou livre de partilhar do sofrimento que a injustiça causa. Mas será que a culpa não era minha? Eis a pergunta que fiz. Talvez fosse; eu era calado, enquanto os outros eram excepcionalmente conversadores; minha perícia se ocultava sob uma expressão neutra. Quando não isto, eu era agressivo - e a agressividade, mesmo quando há motivo para ser, afasta as pessoas.

— Bem, Grão-Mestre, eu nunca fui agressivo. Sempre tentei ter cuidado com as minhas palavras, como pode ver.

— Não disse que este era seu caso. A questão é que talvez suas ideias não sejam apreciadas pelas massas, e isto não significa que sejam ruins. Talvez elas nem sejam suas, afinal.

Aquelas últimas palavras serviram-me como sementes de dúvida. Como assim? Óbvio, certos temas são compartilhados por vários autores, sejam prosadores, poetas ou o que mais calhar; é interessante, porém, que ele tenha escolhido aquele específico conjunto de palavras, que referia-se especificamente aos poemas apresentados. Não eram originais em totalidade, como nada é neste mundo; tudo vem de algum lugar, de alguma imagem, de algum símbolo entretecido nas profundezas da consciência. Isto, mesmo naquela época, me parecia elementar, mas eu não iria tão longe ao ponto de dizer que não havia nessas coisas dedo autoral meu.

— Está insinuando que eu plagiei?

— Nada disso — respondeu, imovível (com exceção da mão direita, cujos dedos enlaçavam a alça da xícara de café) — eu falei de ideias, não de poemas.

— Mas poemas são ideias, Grão-Mestre. Ideias estilizadas de uma forma agradável. Ideias acopladas a sentimentos, sentimentos esses que também se tornam ideias. Quer dizer, na minha concepção.

— Esta não é uma discussão sobre a natureza da poesia, o quê ela é ou deixa de ser. Dentre várias coisas, a discussão é sobre reconhecimento. E sabe o quê?

— …diga.

As flechas metafóricas que repousavam sobre seus olhos foram retesadas e, segundos depois, lançadas. O alvo era eu - em particular, embora isto soe ridiculamente pretensioso (como todo este texto, bem sei), minha consciência.

— Nem sempre ser invisível é ruim.

— Mas… como vou viver escrevendo, ora?

— E você pretende viver da escrita? — inquiriu outra vez, terminando sua xícara de café e colocando-a sobre a mesa de maneira a pousar sobre um dos papéis avulsos. Minha observação - por vezes falha, mas sempre astuta - dizia-me que aquilo era forma de me deixar nervoso.

— Bem, sim! Preciso de atividades mundanas para sustentar as minhas outras atividades.

— Lixeiro, gari ou garçom são boas opções.

— Que absurdo!

— Há algo de profundamente estranho nisso, Paragon. Sua fortuna é suficiente para que você não trabalhe um único dia sequer. Não deveria se preocupar com glória ou fama; ou melhor, já que elas são tão importantes para você, deveria comprá-las, como todas as pessoas razoáveis fariam.

Seus lábios curvaram-se novamente num sorriso, mas este não derivava de um gesto cômico; em natureza, consistia mais de coisa maliciosa. O Grão-Mestre não conhecia todos os pormenores de minha vida (como notou, apenas algumas informações básicas), mas acredito que ele tenha-se deparado com muitos jovens semelhantes, todos com um inabalável desejo de provar-se. Eu, que de fato nunca tive problemas com questões financeiras, me dedicava a este desejo continuamente, mas ele sempre pareceu-me inalcançável. Não acho confortável discutir aspirações pessoais com sujeitos questionáveis em salas empoeiradas, mas quem sabe ele disesse algo de valor.

— É como trapacear. Eu poderia fazer isso? Sim, mas é aí que vem a pergunta: que graça teria? O importante é construir um castelo do zero, pedra por pedra, portão por portão, janela por janela.

— Bem, se você diz, que seja. Sonhos se destroem sozinhos.

Levantando-se da poltrona, ele se virou para a janela que jazia atrás de si. Sem tirar a vista dela, numa posição que parecia hipoteticamente imponente, — de costas para mim, seu insignificante interlocutor —, continou a falar:

— Agora, como eu dizia, nós misteriarcas somos invisíveis. Aqui a Invisibilidade é desejada, porque é nela que encontramos as melhores formas de operar. Tudo aquilo que está submetido ao escrutínio alheio pode dar indícios de sua natureza verdadeira; o que está escondido, por outro lado, só dará esses indícios quando achar que deve. Essa é a natureza de muitas organizações misteriarcas, a nossa e muitas outras. Isto é, mesmo que tenhamos zilhões de diferenças.

— Tudo bem, Grão-Mestre. Mas, sobre os poemas…

— O que têm eles?

— Já que as ideias não são supostamente minhas, ent-

— Não são.

Sua interrupção, mesmo quando a todo momento eu esperava ele terminar as absurdas conclusões, - ou assim me pareciam -, era algo que contribuiu para me tirar do sério. Novamente insinuando! Novamente dizendo que roubei minhas ideias, mesmo quando elas, de fontes comuns, foram tornadas por minha ótica quase totalmente originais! Sei que pareço hiperbólico, e isso é parte de minha natureza; mas não há nada que irrite mais os tipos criativos e potencialmente excêntricos do que dizer que eles não são originais. Em seus espaços internos, a Ordem nos obrigava a utilizar, em épocas frias, casacos de lã (semelhantes àqueles dos marinheiros) com símbolos discretos bordados nas mangas que identificavam nossos graus; a parte visual de minha originalidade já havia sido toldada. Não sendo o bastante, o Grão-Mestre parecia particularmente comprometido com toldar o resto.

Irritado, também levantei-me, fazendo questão de ser o mais ruidoso possível. Conforme organizava e recolhia minhas folhas, vi que aquela sobre a qual ele pôs a xícara de café ficara marcada com uma auréola.

— Não se preocupe, Paragon. Em breve você entenderá o porquê de eu dizer aquilo que digo. Suspeito que mais em breve do que você pode imaginar.


Durante o dia, eu tratava de ser o mais prolífico possível em minhas atividades. Estas, como você deve imaginar, não se restringiam tão pateticamente ao mundo literário; eu mantinha uma rotina regular de exercícios, que consistiam de caminhadas e outras coisas cuja menção não me parece necessária. Não eram peripécias propriamente ditas, ao menos não como as minhas literárias; a peripécia, parece-me, tem de ter algum tipo de objetivo malicioso ou secundário, o que tais práticas não tinham. Mas quer saber? Contrario-me - tinham um propósito secundário sim. Muito mais do que manter minha saúde em níveis aceitáveis, (Não queremos pessoas que não consgiam ter o mínimo de autocuidado, dizia um dos textos da Ordem), a ideia era que eu conseguisse me poupar de um mal que nos ataca principalmente à noite. Quando o sol cai e leva consigo a luz, quando sobe aos céus a lua, é natural que nos venha um certo sono. Não em meu caso, contudo.

No meu caso, o sono surgia em períodos esporádicos durante o dia e cessava completamente durante a noite; mesmo que eu não me entregasse aos cochilos, era incapaz de dormir. E eu tentava, não como alguém tenta fazer flexões, mas sim como alguém tenta impedir um carro de deslizar languidamente para o fundo do mar. A palavra-chave para compreender-se meu comportamento é desespero, um que nem a vasta extensão de minha casa, nem meu quarto com cama macia e nem a quietude dos arredores podiam aplacar. Não era incomum que, totalmente no escuro (comprei cortinas cada vez mais grossas para bloquear até mesmo a tênue luz noturna), eu virasse e revirasse na cama, sem, no entanto, encontrar qualquer tipo de paz.

Adicionalmente, a conversa que tive com o Grão-Mestre assolava minha mente, o que contribuía para que eu desencontrasse por completo meu tão preterido conforto. As grossas cobertas das quais me valia pesavam sobre o corpo, tentavam contê-lo, embora semelhante coisa não acontecesse com meus pensamentos; livres, leves e soltos, causavam-me dor. Em dado momento, fiquei cansado - cansado de não conseguir obter o descanso necessário, digo - e levantei-me com raiva, a mesma raiva de quando levantei-me da poltrona mais cedo naquele dia. Meus olhos lacrimejavam.

Eu conhecia meu quarto mais que a palma de minha mão, dado o tempo em que passava nele. Justamente por isso, sem recorrer ao interruptor, fui à mesa de escrivaninha e acendi a luminária antes mencionada. Aquele não era um momento apropriado para escrever, e eu raramente escrevia durante as horas da insônia; preferia revisar, ou, se não isto, ler minhas palavras e ver se elas ainda me agradavam. Com as folhas lá dispostas (as mesmíssimas que protagonizaram aquela desatrosa troca entre mim e o Grão-Mestre), voltei-me àquela afligida pela xícara de café. A ausência de quaisquer comentários positivos mais específicos - algo muito frustrante, devo dizer - acabou tirando a minha atenção para o poema datilografado lá.

Este mundo é habitado por espelhos,
Que mostram tudo, mas também escondem,
As Ilusões se nutrem pelos seios
Estão perto, mas podem ir mais longe;
Tudo que eles revelam são mentiras
Distorcidas por lentes curiosas,
Na pureza há uma mancha; na calma, ira
E na podridão hão jóias ostentosas,

Quando tudo é fachada, mera forma,
Quando nada se pode só tomar
Pelo valor daquilo que se mostra,
Aceitar nunca vai só nos bastar;
Quando jaz abstrata criatura
Quase invisível, mesmo que presente,
A criar armações, também perjuras,
Qu’enredam-se no espírito inocente,

Não podemos parar de perseguir
Um reflexo de luz enfim real,
Por ser reflexo, sempre está a fugir
Em direção ao oposto Bem e Mal,
Mas não são dualidades dualidades
Sem dose de vital sinceridade;
Pois quando elas se encontram, realidades
Mudam; mentiras são, mas são verdades.

Na vida, caso ainda existam metas,
Devemos convergi-las tão somente
Para descobrir cousas que são certas,
Em essência e aparência convergentes,
Assim, que se desmanchem as miragens,
Commo se fossem feitas de vapor,
No que não muda alçamos ancoragem,
No que é constante em Forma, Vida ou Cor!

E quando polifônicos chamados
Tentarem confundir-nos, insolentes,
Só nos bastará vê-los destroçados
Na ampla metamorfose; novos entes!
Se não notaste já qual é meu assunto,
Certo estou de que não é uma panaceia,
Falo do que jamais vira defunto,
De coisa inalcançável: minha Ideia!

Eu não diria que era um dos meus melhores poemas, mas definitivamente estava longe de ser ruim. A combinar com o último verso, surgiu-me, de repente, uma ideia; ou melhor, uma suspeita: será que colocar a xícara sobre ele não havia sido coisa aleatória? Discutimos sobre minhas ideias serem originais ou não, e este era o assunto do poema de forma quase direta. Embora eu não tenha conseguido racionalizar a suspeita (o que a torna, d’um certo ponto de vista, inútil), ela se ramificou para as mais loucas fantasias. Concluindo que não era saudável para mim abraçar o mundo desperto e que minhas costas doíam por causa do sólido encontro da cadeira, desliguei a luminária e levantei-me. Quando estava fazendo o caminho de volta à cama, no entanto, senti uma necessidade espontânea de virar-me e encarar o local que havia abandonado há pouco.

Na completa escuridão do quarto, algo vindo daquela direção brilhava. Pisquei algumas vezes, pois não se deve confiar nas vistas de um insone, enganadas pelo que parece ser o vestígio reprimido das alucinações hipnagógicas. O brilho não era, como se pode pensar, branco ou amarelado, e sim multicor. Que horas eram? Não que isto importasse no momento. Aproximei-me novamente e olhei para a folha de papel, concluindo que ela era a fonte de tão estranhas visões - a parte da auréola, especificamente. Pisquei mais algumas vezes antes de afastar-me, apenas por precaução, embora isto não tenha funcionado.

A auréola, erguendo-se no ar, retendo todo o seu brilho, rastejou até encostar na parede, onde permaneceu suspensa. Seu círculo, além de uma quase-indistinta mistura de todos os tons do arco-íris, parecia conter em si energia extraordinária, que se notava pelas constantes movimentações das cores. No centro, antes apenas parte da parede, abriu-se vórtice negro, que perdeu a forma circular, transformando-se até parecer uma mancha de tinta. Mesmo já tendo presenciado uma cota considerável de acontecimentos inexplicáveis, aquele me surpreendeu. Teria eu desrespeitado o Grão-Mestre e, em minha petulância, merecido a punição? Estaria alguém pregando peça em mim? Se sim, quem seria capaz de coisa destas? Estaria eu alucinando por conta de minha insônia?

Os tipos comuns sairiam correndo, sem mais nem menos. Mas eu, como tipo excêntrico e criativo, - coisa que estava longe de manifestar-se somente na vocação -, fui estranhamente atraído por aquela vista. De repente, tanto a fortuna de minha família quanto minha preciosa coleção de poemas datilografados pareceram não valer de nada, não quando confrontados com a possibilidade de conhecer e experienciar sensações normalmente toldadas aos ordinários (mas era eu ordinário?). Pois qual é o valor de um misteriarca se se amedronta diante do Mistério? Nenhum. Com passos vacilantes, aproximei-me; encarei o vazio e o vazio não me encarou de volta. Fazendo aquela típica pose dos nadadores, pulei; mergulhei no desconhecido.

A primeira hipótese que conjecturei era a de que eu estava prestes a despencar eternamente em direção ao nada absoluto. A segunda, que eu havia caído em algum tipo de armadilha. Entretanto, nada havia sobre os meus pés e eu ainda sim não rumava para as negras vastidões. Eu também não conseguia sair do lugar, embora pudesse mexer livremente meus membros. Depois do que estimo serem segundos, pequenas luzes começaram a brilhar, aqui e ali, debaixo de e sobre mim. Logo, elas preencheram o nada, passando a nutrir várias semelhanças com as estrelas observáveis num céu límpido e noturno. O deslumbramento seria a primeira opção de muitos; sendo um só, não deslumbrei-me. Senti um medo avassalador percorrendo minha espinha - saber que eu não estava sozinho não parecia mais reconfortante.

Pisquei meus olhos algumas vezes, chegando à conclusão de que eles realmente não eram confiáveis. Na terceira dessas piscadas, fui transportado para outro ambiente, pois senti chão sobre meus pés e algo macio sobre meus glúteos. A mesa; as cortinas; o Grão-Mestre, encarando-me como fizera antes naquele dia, seus olhos exibindo uma satisfação sádica que poucas vezes tive o desgosto de presenciar. Ele, sempre sério, saturnino, sorria. De orelha a orelha.

— Seu filho da…

— É normal ter esse tipo de reação. Eu também não fui muito decoroso da primeira vez.

— O que raios você fez comigo? Me drogou?

Mais que sorrir, ele riu.

— Mas fui eu quem tomei o café, oras, não você.

— Imaginei que eu tivesse ido para minha casa, tentado dormir, lido meu poema, o que você manchou…

— Ai, ai. Olhe para a janela. Ou pela janela, tanto faz.

Virando-me para fazer o que ele pediu, pude ver através das frestas da cortina, levemente entreaberta. Lá fora, um céu muito límpido ostentava-se, límpido até demais; isto é, não um céu, mas uma vastidão doentiamente estrelada, como se estivéssemos pairando no próprio espaço. Sem chão ou construções adjacentes (que definitivamente existiam no mundo normal, pois a Ordem reúne-se num local até que discreto). Eu, não um dos sujeitos mais estúpidos do mundo, entendi que se tratava d’algum tipo de teste, embora todo o resto permanecesse completo mistério. Esta última parte até que faz sentido, dado o nome e caráter de nossa organização.

— Quero explicações, Grão-Mestre, p-por obséquio… — retomei minha compostura; ao menos, parte dela.

— É claro, Paragon. Acima de qualquer outra coisa, você sabe qual um dos elementos-chave que tornam os Misteriarcas misteriarcas?

— Perguntas retóricas me torturam, Grão-Mestre.

— Pois vou torturá-lo mais um pouco. Essencialmente, significa ter acesso a mistérios além de nossa compreensão. Este é um deles. Lembra-se do que eu disse sobre as massas não gostarem de suas ideias?

— Claro que lembro, ora. A conversa foi hoje cedo.

As flechas-metafóricas nos olhos do Grão-Mestre retasaram-se novamente, justo quando pensei que elas tinham desaparecido. Inclinando a parte superior de seu corpo e cruzando os dedos das mãos de forma a sustentarem-lhe o rosto, disse-me, de forma provocativa (embora não no aspecto sexual da coisa):

— As massas não precisam gostar de suas ideias. Desde que essas ideias se prendam às mentes alheias, um fascínio obscuro e subconsciente é exercido. A partir daí, você pode utilizar esse fascínio como forma de travar contato direto.

Como se tudo fosse parte de um quebra-cabeça, comecei a entender a estratégia que fôra habilmente utilizada contra mim. Gosto de tirar conclusões antes d’os assuntos se apresentarem em totalidade; há algo de delicioso nisto, de relaxante - é um ato de transgressão mental. Quando, no entanto, temos em jogo nossa própria posição, tais trangressões tornam-se mais perigosas, o que em parte é bom, mas pode ser catastrófico. Contendo meu espírito hipocondríaco, evitei de roer as unhas, mas o arregalar de meus olhos não deixaria espaço quanto à ansiedade crescente em meu interior.

— Continue, por favor, continue — disse-lhe enfaticamente.

— Eu entrei na sua mente, Paragon. Você já acha que sou alguém de caráter e propósitos dúbios, o que apenas facilitou tudo. Aliás, a xícara de café teve papel essencial nisto. Pensei que vocẽ se perguntaria se fiz de propósito ou não.

— Tá, tá, admito. Você me deixou pensando. Mas que lugar é este, afinal?

— É o Ideaplano, ou Ideaspaço, como gosto de chamar; o segundo nome tem mais charme e insinua com maior fidelidade a aparência. Este aqui é um local formado pelos delírios, fantasias e, pasme, ideias de todas as pessoas, de todos os mundos.

Eu estava muito atordoado para dizer qualquer coisa, então disse apenas o silêncio.

— …

— Sim, existe mais de um mundo, se é isso que você quer saber.

— Mas… isso não explica como eu vim parar aqui, ou explica?

— A maioria das pessoas acessa o Ideaplano quando está envolvida em qualquer atividade que lhes exige imaginação ou raciocínio, ou quando estão sonhando acordadas. Este era seu caso, não?

— Ugh, era. Era sim. Na impossibilidade de sonhar dormindo, já que sou insone.

— Sua mente racional estava fraca; suas fantasias, porém, foram fortalecidas e estimuladas. Bastou apenas que eu utilizasse de certas… ferramentas, para acessá-la, visto que uma conexão tinha sido feita.

Já que ele se propôs a sanar-me as dúvidas, decidi perguntar tudo aquilo que tinha previamente me irritado.

— Tudo bem, Grão-Mestre. Admito que é um pouco demais para eu assimilar no momento, mas há algo que me intriga — neste momento, imitei-lhe os gestos e também aproximei-me da mesa — primeiro, sobre suas “ferramentas”. Depois, sobre aquela frase de “sonhos se destroem sozinhos”, que não parece condizer com isto de modo algum.

— Minha ferramenta é o Entreplanos. Sim, sonhos se destroem se você não encontrar uma maneira de manifestá-los, pois são instáveis e elusivos.

— Se importa de me explicar?

Ah, como eu fui inocente! Se aquela foi a primeira vez em que o vi rindo, esta foi a segunda, e definitivamente tinha de ser às custas de minha sanidade (e ansiedade).

— Sim, me importo. Você ainda é só um neófito, Paragon. Continue progredindo com diligência. Quando for o momento certo, saberá.


Eu poderia concluir este texto mostrando maior consideração com o leitor; poderia, também, explicar novamente aquilo que foi apresentado pelas palavras de meu Grão-Mestre, a quem estimo com muita consideração, sujeito realmente excepcional. No entanto, permita-me utilizar esses últimos dois parágrafos para esclarecer os motivos pelos quais não vali-me de um rigor didático e de uma explicação abstrata, preferindo a simplicidade. Veja; como o texto provou, abstrações são interessantes e possuem infinitos potenciais, então não é contra elas em si que dirijo minha crítica. No entanto, ocorre que é melhor a contação de histórias para explicar, para elucidar; é uma prática-abstrata, pois imita nossa realidade, ainda que pertença apenas ao reino imaginário.

Sobre o Entreplanos, não serei eu aquele que ira explicá-lo. Quem há-de se prestar a esta tarefa é Alexander, cujos métodos diferem dos meus, embora sejam apenas diferentes, não melhores ou piores. Para terminar com estilo, como fosse o final de um soneto, grave esta frase em sua mente:

Tudo que podemos imaginar, existe.